NOTA 79 - O ESTRANGEIRO - de Albert Camus
1 -Hoje,a mãe morreu.Ou talvez ontem,não sei bem.Recebi um telegrama do asilo:"sua mãe falecida.Enterro amanhã.Sentidos pêsames"...
Tomei o autocarro ás duas horas.Estava muito calor.Como de costume,almocei na restaurante do Celeste.Estavam todos com muita
pena de mim e o Celeste disse-me : "Mãe,há só uma".
2 - A ardência do sol queimava-me as faces...Era o mesmo sol do dia em que a minha mãe fora a enterrar... dei um passo,um só passo em frente.E desta vez,sem se levantar,o árabe tirou a navalha da algibeira e mostrou-ma ao sol.A luz reflectiu-se no aço e era como uma longa
lâmina faiscante que me atingisse a testa... crispei a mão que segurava o revolver.O gatilho cedeu,toquei na superfície lisa da coronha e foi
aí,com um barulho ao mesmo tempo seco e insurdecedor,que tudo principiou.Sacudi o suor e o sol.Compreendi que destruira o equilibrio
do dia,o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz.Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte,onde as
balas se enterravam sem se dar por isso.E era como se batesse quatro breves pancadas,á porta da desgraça.
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" O Estrangeiro " é o mais famoso romance do escritor Albert Camus,tendo sido traduzido em mais de 40 línguas e tendo uma adaptação
cinematográfica realizada por Luchino Visconti,em 1967. Faz parte do "ciclo do absurdo" de Camus,conjuntamente com o ensaio "O Mito de Sísifo" e a peça de teatro "Calígula".(wikipedia/o estrangeiro)
O protagonista do romance é Meursauld e o livro gira á volta de dois factos fortes : 1 - A morte da mãe de Meursauld ; 2 - A morte do árabe,
morto por Meursauld.
Mas quem é Meursauld ? É um tipo que detesta que lhe façam perguntas,um bocado "aéreo" - não sabia a idade da mãe - talvez "uns sessenta e tal anos" ,e á pergunta: "Era muito velha?",responde:" Assim,assim." Meursauld gostava de guardar "as coisas que me divertem
nos jornais" e vivia e trabalhava em Argel,capital da Argélia,que nessa altura era uma colónia francesa. Contudo,vivera algum tempo em Paris,
uma cidade que - diz Meursauld - "É suja.Há pombas e pátios escuros.As pessoas têm a pele muito branca". Gostava de nadar,não acreditava em Deus - "por hoje acabou,Senhor AntiCristo" - dizia o juiz de instrução - e as pessoas "pintavam-no como tendo um carácter taciturno e fechado". Contudo,"era um rapaz novo",gostava de observar "as extraordinárias gravatas do advogado" quando este o visitava na prisão e distinguia os pensamentos de um homem livre,dos pensamentos de um prisioneiro. Quando a namorada lhe perguntou se queria casar com ela,disse :"tanto me faz,mas se quiseres casar está bem."
No velório da mãe,quando lá chegou,o caixão estava fechado e ele não quis que o abrissem,mas ficou embaraçado porque sentiu que não devia ter dito isso. Durante a noite bebeu café com leite,que lhe trouxe o porteiro do asilo,com quem conversou e fumou um cigarro diante do caixão da mãe,pois considerou que "isso não tinha importância nenhuma". No entanto,esses factos (não querer ver o corpo da mãe,não chorar,não saber a idade da mãe,fumar diante do caixão,dar provas de insensibilidade no dia do enterro ) viraram-se contra ele durante o julgamento,o que levou o Procurador a dizer :" acuso este homem de ter assistido ao enterro da mãe com um coração de criminoso".
Os pensionistas do asilo não assistiram ao enterro,com excepção do "Sr. Pérez", o "noivo" da mãe. Ou seja,aquele velhote com o qual a mãe de Meursauld partilhava as horas e o convívio no asilo. Andavam sempre juntos e,excepcionalmente,o Director dera autorização
para que Tomás Perez seguisse o préstito.
Após o funeral da mãe,regressa a Argel,onde,logo no dia seguinte,encontra Maria Cardona,com quem vai ao cinema e,depois,dorme com ela em casa. Este facto também foi explorado pelo Procurador no julgamento :" Meus senhores,um dia depois da morte da sua mãe,este homem tomava banhos de mar,iniciava relações com uma amante e ia rir ás gargalhadas,num filme cómico."
Avancemos para a questão da morte do árabe. Um amigo de Meursault - Raimundo - vizinho do mesmo andar,desentendeu-se com um
árabe com o qual "jogara á pancada na rua" e,a partir daí,um grupo de árabes ficaram ressentidos contra Raimundo. Encontraram-se na
praia,uma primeira vez,e aí,Raimundo entregara a Meursault um revolver que levava consigo.Mas,dessa vez,os árabes "desapareceram
por detrás do rochedo".Regressaram a casa,mas,Meursault voltou para a praia sozinho. E foi então que se deu o encontro com o árabe que
culminou com o que está descrito no nº 2 do início deste comentário.
A instrução do processo durou 11 meses. Foi julgado por um Tribunal de Juri e o Procurador pediu a pena de morte. ("Peço-vos a cabeça
deste homem - disse - ,e é sem escrúpulos que vos dirijo este pedido"). E assim foi. "O Presidente do Tribunal disse-me de um modo estranho
que me cortariam a cabeça numa praça pública em nome do povo francês".)
Foi interposto recurso da sentença.Mas Meursault não tinha muita "fé" no recurso. Preparava-se para o pior. E até insultou e atacou um padre
que o foi ver á prisão. Estava um pouco desesperado,á espera do dia em que seria executado.
Mas,Meursault acabou por ser executado ?
Não sabemos. O livro acaba. Cada um que construa o seu final.
Por mim,prefiro concluir que os Juízes do Tribunal de Apelação comutaram a pena de morte,para 15 anos de prisão,porque,no momento
do crime,o sol prejudicou grandemente Meursault, no seu descernimento e nos seus actos.
E,Meursault,já cumpriu os 15 anos de prisão. Agora,não está em Argel. Anda a calcorrear as estradas por esse mundo fora... Aliás,
encontrei-o um dia destes,em Sesimbra,em amena cavaqueira com um "turista". E,quando me viu,ao balcão do café a tomar uma bica,
disse-me : " tás bom pá ! Vê lá o final que tu arranjaste para o romance ! ".