NOTA 67 - A QUEDA - de Albert Camus
A QUEDA - de Albert Camus
Em Paris,dirigia-me eu para a margem esquerda,para casa,pela Pont Royal. Passei por detrás de uma
forma debruçada sobre o parapeito e que parecia olhar o rio. De mais perto,distingui uma mulher nova e
esguia,vestida de negro. Entre os cabelos escuros e a gola da capa,via-se apenas uma nuca,fresca e
molhada,à qual fui sensível. Mas segui caminho,depois de uma hesitação. Ao fim da ponte,meti pelo cais,
direito a Saint-Michel,onde eu morava. Tinha percorrido já uns cinquenta metros,mais ou menos,quando
ouvi um baque,que,apesar da distância,me pareceu formidàvel no silêncio nocturno,de um corpo que tomba
na água. Estaquei,mas sem me voltar. Quase imediatamente,ouvi um grito,várias vezes repetido,que descia
também o rio e depois se extinguiu bruscamente. O silêncio que se seguiu,na noite subitamente parada,
pareceu-me interminàvel. Quis correr e nem me mexi. Tremia,julgo eu,de frio e de surpresa. Dizia para
mim mesmo que era preciso agir rápidamente e sentia uma fraqueza irresistìvel a invadir-me o corpo.
Esqueci-me do que então pensei."Tarde de mais,longe de mais...",ou qualquer coisa deste género.
Escutava ainda,imòvel. Depois,em passos rápidos,debaixo de chuva,afastei-me. Não preveni ninguém.
in, A Queda
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Albert Camus nasceu a 07/11/1913,em Mondovi,Argélia,e faleceu a 04/01/1960,com 46 anos,em Villeblevin,
França,num acidente de automòvel,quando fazia uma viagem para Paris na companhia da família Gallimard.
(o carro despistou-se e embateu numa árvore. Camus teve morte imediata.) Foi escritor - romancista,ensaísta,
dramaturgo,filósofo,e ainda jornalista, e militante na Resistência francesa. Pertencia a uma família pobre,viveu
na sua terra natal sob o signo da guerra,da fome e da miséria e foi com dificuldade que se doutorou em filosofia
com uma tese sobre Santo Agostinho,depois de no Mestrado ter dissertado sobre o neoplatonismo. Foi galardoado
com o Prémio Nobel da Literatura em 1957. Conheceu Jean-Paul Sartre em 1942 devido ao livro "O Estrangeiro",
sobre o qual Sartre escreveu ilogiosamente dizendo que gostava de conhecer o autor. Um dia,numa festa em que
estavam os dois,Camus apresentou-se a Sartre dizendo ser o autor do livro. A amizade durou até 1952,quando
a publicação de "O Homem Revoltado" provocou um desentendimento público entre Sartre e Camus. Escreveu,
entre outros,"O Estrangeiro",romance,1942;"O Mito de Sísifo",ensaio sobre o absurdo,1942;"A Peste",1972;
"O Homem Revoltado",ensaio filosófico,1951;"A Queda",1972; e "O Exílio e o Reino",contos,1957.
" A Queda " é um livro fàcil de ler,mas um pouco mais complicado de entender. Estamos perante um texto onde
apenas existe um personagem a falar,embora fale para um interlocutor,a quem chama " meu caro compatriota ",
que no entanto nunca intervem na conversa. O livro é,pois,um monólogo no qual o protagonista expõe os seus
pensamentos e faz as suas confissões,sobre a vida,enquanto o interlocutor se limita a ouvir e a acompanhar
o raciocínio de quem fala. E quem fala e o que diz ? Quem fala é Jean-Baptiste Clamence,que foi advogado
em Paris,antes de ter ido viver para Amesterdão,onde mora no bairro judeu,de onde Hitler deportou ou assassinou
75.000 judeus durante a 2ª guerra mundial. E que faz Jean-Baptiste Clamence em Amesterdão ? Bem! agora
já não exerce a advocacia,embora seja "consultor jurídico" dos habitantes do bairro onde mora. Passa os dias
à conversa com quem calha,nomeadamente com os tripulantes e passageiros dos navios que chegam a
Amesterdão,num bar chamado " México-City ",propriedade do "gorila" e onde tem oportunidade de falar de si,
da sua vida e,presume-se,ouvir o que os outros lhe dizem da vida deles.(" Eu prego na minha igreja de "México-
City ".) Estamos,pois,perante um livro onde o protagonista conta a sua vida,profissional e pessoal,áqueles
que encontra,no meio de uns copos de genebra,a " única claridade nestas trevas ".
E agora é que começa a dificuldade,porque Jean-Baptiste Clamence não é uma pessoa qualquer. É um
advogado,com ar de jogador de rugby,que fora rico e sempre tinha sido um profissional irrepreensível,que
gostava de estar "no lado bom" e cultivava a cortesia,a generosidade e apreciava os deleites da profissão.
Tinha-se,pois,em grande conta.E é disso mesmo que ele fala:" o sentimento do direito,a satisfação de ter
razão,a alegria de nos estimarmos a nós próprios são,caro senhor,molas poderosas para nos suster de pé
ou nos fazer avançar". Fala de uma "vida em pleno êxito" e diz que "achava-me um pouco super-homem".
Mas as coisas mudaram. E mudaram quando se deu o episódio com que abre este comentário ; a queda
de uma mulher no rio sena,em Paris,à qual o Clamence assistiu,impávido e expectante,e nada fez para
salvar a mulher. E,a queda daquela mulher,foi também a queda do Jean-baptiste Clamence do pedestral
onde se colocara. Afinal,não era nenhum super-homem e nem sempre estava "do lado bom". Aqui,ele
falhara,onde não devia ter falhado. No auxílio a quem precisava.
Bem ! A partir de então passou a ser outro. Mais modesto,menos convencido,mais identificado com
"o outro lado" da vida. Assim,descobre o absurdo da vida,as angústias,os dilemas e os conflitos do dia a
dia. E fala neles no livro. Diz-se "meio Cerdan,meio de Gaulle,fala das "aventuras amorosas pouco
brilhantes",da solidão ("compreendi que não tinha amigos" e Ah!,meu amigo,sabe o que é a criatura
solitária,errando através das grandes cidades?...),dos olhos da alma ("... se há uma alma e se ela tem
olhos! Mas aí está,não se sabe ao certo,nunca se sabe ao certo"),dos juìzes pelos quais tinha "um
desprezo institivo em geral",mas depois acaba por lhes chamar "nossos irmãos". Fala das prisões
("o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média chamavam o "desconforto" ? )
e da cela dos escarros,e diz que não vale a pena esperar pelo Juízo Final,pois ele "realiza-se todos
os dias". Diz que " a escravatura,oh isso não,nós somos contra!,mas,"a servidão,de preferência
sorridente,é pois inevitável". A riqueza ? "todos procuram ser ricos.Porquê ?... porque a riqueza nos
livra do julgamento imediato...". Fala das visitas que fazia aos "cafés especializados onde se reuniam
os nossos humanistas profissionais" e dos "meses de orgia" que viveu "numa espécie de nevoeiro
onde o riso se tornava surdo a pontos de acabar por já não o distinguir." Aborda a religião e diz que
"conheceu um romancista ateu que rezava todas as noites" e sobre Jesus refere que "ele próprio
sabia que não estava completamente inocente",referindo -se às crianças da Judeia massacradas,
enquanto os pais de Jesus o levavam para lugar seguro... e afirma que foi "Papa" num campo de
concentração e gosta de cães "porque perdoam sempre". Conta episódios da 2ª Guerra Mundial,
na Tunísia,e confessa que tem na sua casa um quadro furtado em 1934,em Gante,na catedral de
Saint-Bavon,de Van Eyck - Os Juízes Íntegros - e explica como é que lá foi parar. Diz que agora é
juiz penitente,embora não se saiba bem o que isso é,mas terá a ver com a "prática da confissão
pública" a que agora se dedica. Em suma,chega á conclusão de que "quando formos todos
culpados,será a democracia" e repete sem cessar as palavras que,há anos,não cessam de retinir
nas suas noites : " Ó pequena,deita-te de novo á água para que eu tenha pela segunda vez a
sorte de nos salvar a ambos ! ".
E quem é,afinal,o interlocutor que,durante 5 dias o ouviu e a quem chama " meu caro compatriota " ?
Vem-se a saber no final : " Ah,o senhor exerce em Paris a bela profissão de advogado. Eu bem
sabia que éramos da mesma raça ".