NOTA 59 - NO CASTELO DO BARBA AZUL - de George Steiner

1 - Será razoável supormos que toda a civilização elevada desenvolve tensões implosivas e movimentos de auto-destruição ?...
O seu modelo seria então o de uma estrela...
2 - A supremacia do Ocidente durante dois milénios e meio não deixa de ser,no essencial,um facto irrecusável.
3 -A minha tese é que certas origens da inumanidade,da crise que nos obriga hoje a uma redefinição da cultura,devem ser 
procuradas na longa paz do séc.XIX e no nó mais denso do tecido complexo da civilização.
4 - Abriremos,penso eu,a última porta do castelo embora ela possa levar,ou talvez  "porque" pode levar,a realidades que estão
para além da capacidade do entendimento e controlo humanos.
("No Castelo do Barba Azul",33,72,19,141)
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Estamos muito longe de abrir a última porta do castelo.Mas,também eu penso,que tentaremos lá chegar,embora a última porta,nunca 
seja a última. Os 2.500 anos da supremacia da Civilização Ocidental,como diz Steiner,baseada no legado greco-romano,serão vistos pela
História,como mais um período da História do Mundo,como qualquer outro que existiu até agora. A globalização trará consigo outros valores
e outras supremacias.Talvez que se imponha daqui por algumas centenas de anos,ou mais cedo,uma Civilização Universal,que todos abarque e que dissolva no seu seio as civilizações regionais que agora existem (a ocidental,a oriental,a do médio-oriente,etc).Parece ser esse o caminho da História da Humanidade,que nada nem ninguém será capaz de travar.E,é claro que os valores e princípios subjacentes á cultura ocidental,estão em profunda crise. Vivemos,como diz George Steiner,uma pós-cultura e a cultura ocidental como  "o melhor que foi dito e pensado" está a desmoronar-se. São os novos tempos caracterizados,nas palavras de Steiner,pela ruptura dos costumes,pela ingestão de
substâncias terapêuticas e narcóticos com alterações efectivas da personalidade,e pela utopia do imediato. Para onde vamos ? Assim como
a ciência não tem resposta para muitas perguntas sobre a origem e o fim do universo,a sociologia também não responde,nem pode responder,á questão "para onde vamos ?". Certo é que a sociedade humana não é estática na sua organização e no seu relacionamento. Há muitos factores que condicionam a evolução social e não é possível prever que tipo de sociedade haverá daqui a outros 2.500 anos,embora possamos admitir  que estaremos a viver num planeta globalizado com muitas regras semelhantes para todos. Mas pode ser que não seja assim e que a fragmentação da organização social ainda subsista. Talvez fique algo vivo da civilização ocidental.Vamos ver se a língua inglesa se impõe como língua universal falada por toda a humanidade.
GEORGE STEINER ,nasceu em Paris em 23/4/1929,filho de imigrantes austriacos.Licenciou-se na Universidade de Chicago e completou o mestrado na Universidade de Harvard,tendo realizado o doutoramento na Universidade de Oxford.Em 1944 adquiriu a nacionalidade americana,embora tenha vivido grande parte da sua vida na Europa.Lecionou em Cambridge,Stanford,
Yale,Genebra e na Áustria.É um dos expoentes máximos da Grande Cultura Europeia,galardoado com inúmeros e importantes prémios. Ensaísta,crítico literário,filósofo,novelista,tradutor e educador,George Steiner tem escrito abundantemente sobre a relação entre a linguagem,literatura e sociedade,e sobre o impacto do holocausto.Considerado um dos mais importantes pensadores actuais,quando em Novembro de 2009 passou por Viseu,referiu á comunicação social que se vive hoje "um dos períodos mais selvagens da História",em que  os dois grandes produtores  de dinheiro são a droga e a pornografia".
G. Steiner participou na V Conferência Internacional de Filosofia e Epistemologia do Instituto Piaget,em Viseu,que durante 3 dias se dedicou a reflexões sobre a condição humana.George Steiner,na altura,professor da universidade de Cambridge,de origem judaica,considerado um " humanista pessimista ",afirmou que o holocausto mudou "o significado da condição humana",que se tornou hoje profundamente problemática.Referiu que "há hoje mais  crianças escravizadas,morrendo de doenças e de fome do que alguma vez houve". A violência e o conhecimento vivem paredes-meias e deu como exemplo de que,nos campos de concentração,num mesmo dia,primeiro escutava-se Schubert e depois torturavam-se e matavam-se pessoas".(www.ionline.pt/george-steiner)
O holocausto é das páginas mais negras da história da humanidade.O termo análogo  de referência com os campos de concentração é o Inferno." O campo de extermínio encarna,muitas vezes até ao pormenor,as imagens e crónicas do Inferno que encontramos na arte e no pensamento europeus entre os sécs. XII e XIII. Interroga-se:"porque é que as tradições humanistas e os modelos de comportamento correspondentes se revelaram defesas tão frágeis contra a bestialidade política ?" E acrescenta:"uma teoria da cultura,uma análise da nossa situação de hoje,que não logre considerar no seu eixo as modalidades do terror que levou á morte,por meio da guerra,da fome e do massacre deliberado,cerca de 70 milhões de seres humanos na Europa e na Rússia,entre o início da 1ª Guerra Mundial e o fim da 2ª Guerra Mundial,não pode deixar de me parecer irresponsável. Diz que houve uma "indiferença colaboradora" da vasta maioria da população europeia,face ao holocausto e que "minada pelo tédio e pela estética da violência,uma considerável fração da "inteligentzia" e das instituições  da civilização europeia--as letras,a universidade,o mundo das artes--deram mais ou menos  calorosamente as boas-vindas á instauração da inumanidade" .Conclui que "as manifestações extremas da histeria colectiva e da selvagaria de massa podem coexistir com uma conservação e até um desenvolvemento simultâneos das instituições,organismos burocráticos e códigos profissionais da alta cultura. Ou seja,as bibliotacas,museus,teatros,universidades,centros de investigação,nos quais e através dos quais a transmissão das humanidades e das ciências tem fundamentalmente lugar,pode prosperar na vizinhança dos campos de concentração".   
Conclusão: a raça humana é capaz do melhor,mas também do pior.Não é de confiança.Essa é uma característica que se tem mantido ao longo dos tempos e que pode manter-se no futuro.
A razão humana não pende sempre para o lado positivo.O homem encerra no seu ser "o lado mau" e muitas vezes põe-no em prática. Devia ser assim ? Ou deviamos escolher sempre "o lado bom" ? ... Há um problema! é que o bom para uns,pode ser o mau para outros,em muitas ocasiões. Não é possível pôr todos a pensar da mesma forma e a terem as mesmas convicções políticas,sociais,religiosas e por aí fora.Parece que estamos condenados a ser diferentes,embora deva haver um núcleo de princípios e de valores que sejam aplicados a todos e que estão na base da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
George Steiner é um " humanista pessimista ",herdeiro do pensamento de Sócrates.Mas podemos refletir o seguinte:É certo que a sociedade actual vive uma profunda crise de valores e há uma grande desumanidade em vastas regiões do globo.Mas também é incontestável que vivemos melhor hoje,do que alguma vez já vivemos. Vivia-se melhor no séc.XIX ?  ou no séc. XVIII ?
O nivel de vida das populações hoje,em boa parte de mundo,é ou não é melhor do que era nos séculos passados ? Há ou não há uma evolução  no desenvolvimento do mundo ? Parece-nos que há ! O saneamento básico,a água potável canalizada e a electricidade generalizada,computadores,internet,viagens aéreas democratizadas e globalizadas,informação á escala mundial imediata,etc.,etc.. A paz que se tem vivido,nomeadamente na Europa,tem contribuido muito para isso.A 2ª Guerra Mundial (1939-1945) deixou o continente europeu destruido.A evolução e o aumento do nível de vida das populações é uma consequência da paz que existe desde então.Foi possível reconstruir e desenvolver e hoje estamos relativamente bem,apesar da actual crise financeira,da elevada taxa de desemprego e do abrandamento da actividade económica,algo que é preciso inverter.
O autor foi buscar o título do livro á ópera do compositor Bela Bartók que tem o mesmo nome. "O Castelo do Barba Azul" é uma ópera em um acto,a única da autoria do hungaro Bela Bartók,composta em 1911.Forte em aspectos simbólicos,a obra utiliza apenas dois cantores acompanhados por uma grande orquestra  de mais de 90 músicos.A história passa-se no interior de um castelo,com apenas duas personagens,os recém casados Barba-Azul e Judite. A ópera começa com a chegada do casal ao castelo.Pesa sobre o nobre Barba-Azul a
suspeita de haver matado as suas 3 primeiras mulheres,e por isso,Judite,diante da escuridão do ambiente,pede que as portas sejam abertas. Barba-Azul resiste,mas,diante da insistência da mulher,vai abrindo uma a uma as portas de sete aposentos,revelando uma câmara de torturas,um jardim e um lago de lágrimas,entre outros.
Sobre a FOME diz George Steiner:" As obscenidades supérfluas das sociedades desenvolvidas coexistem com o que parece ser um estado de fome endémico em grande parte da Terra.
Com efeito,o progresso quanto ás esperanças de vida individual e á duração desta,proporcionado pela tecnologia médica,alimentou o ciclo do excesso populacional e da fome". Refere que "os ecos por meio dos quais uma sociedade procura determinar o alcance,a lógica e a autoridade da sua própria voz,vêm de trás .... Uma sociedade precisa de antecedentes. E,"a nossa experi-
ência do presente,os juízos,tantas vezes negativos,que fazemos acerca do nosso lugar na história,vivem continuamente contra o fundo daquilo a que eu gostaria de chamar o " mito do século XIX" ou o "jardim imaginário da cultura liberal".E acrescenta:" A nossa sensibilidade situa esse jardim na Inglaterra e na europa ocidental dos anos que vão,aproximadamente,de 1820 a 1915.
...)Os traços  maiores da paisagem são inconfundíveis:um nível de cultura elevado e crescente,o primado da lei,as formas de governo representativo,sem dúvida imperfeitas,mas que por toda a parte se generalizam;direito á privacidade e segurança cada vez maior nos espaços públicos;reconhecimento espontâneo do papel axial das artes,ciências e tecnologia em termos económicos e  civilizacionais. Diz que "a decadência catastrófica da memorização no ensino contemporâneo e na bagagem do adulto é um dos sintomas fundamentais,ainda que até hoje mal  elucidado,da natureza de uma pós-cultura",por oposição á aprendizagem em grande medida "de cor" (do coração)--termo que se adequa magnificamente á presença íntima,orgânica,da palavra e do sentido no espírito individual". 
Afirma que as transformações do vocabulário de uma geração para outra fazem parte do curso normal da história da sociedade.Contudo,o que se passa agora é algo de novo:trata-se da tentativa de uma ruptura total."O resmungar do marginalizado",o "vai-te foder" do "beatnik",o silêncio do teenager na casa adversa dos pais,tendem para a destruição. Defende a tese de que
"deixámos de viver a história segundo uma linha ascendente.As nossas existências,sob demasiados aspectos capitais,encontram-se hoje mais ameaçadas,mais sujeitas á servidão arbitrária e ao extermínio,do que alguma vez o estiveram as existências dos homens e mulheres civilizados,no ocidente,desde finais do séc.XVI" e, embora reconheça os "milagres" da tecnologia,da medicina e do conhecimento científico,diz que "o progresso material participa numa dialéctica de destruição concomitante e que devasta irreparávelmente os equilíbrios entre a sociedade e a natureza".
Como se vê,George Steiner é bastante céptico e crítico face ao estado actual da cultura e da civilização ocidental.Que estamos numa pós-cultura,concordamos.Que a história deixou de acontecer segundo uma linha ascendente,discordamos.O mundo,na nossa opinião,apesar de algumas bolsas de guerra e destruição,continua a andar para a frente.A melhoria das condições de vida de boa parte da população mundial e o desenvolvimento tecnológico e científico,não pararam nem regrediram.Há,isso sim,uma mudança profunda nos comportamentos sociais e na simbiose universal,devido á globalização.Esperemos que venha aí outra sociedade,mais humana,mais global,mais justa e menos diferenciada.A civilização ocidental,qualquer dia,pertence ao passado,diluida numa civilização global,com várias características das civilizações regionais que hoje existem.
             Há um bom par de anos atrás,em conversa com um amigo num café, já não me recordo em concreto qual era o tema da conversa,mas seria por certo algum aspecto da crise da sociedade actual.Mas lembro-me claramente deste diálogo:
-- Você sabe o que é que isto me parece ? -- perguntei eu.
-- Não sei ! -- respondeu.
-- Parece-me a queda do Império Romano ! -- disse eu.
-- Tem algumas semelhanças,tem ! -- anuiu.
............................................................................................................  " No Castelo do Barba Azul ", de George Steiner,um excelente livro,para reflectirmos e mergulharmos no mar da sociedade encapelada na qual actualmente nadamos.