NOTA 19 - ADVOGADOS e JUÍZES na LITERATURA e na SABEDORIA POPULAR - de Alberto Sousa Lamy

" Após a formatura na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra ( curso do doutor Carlos Alberto da
Mota Pinto,1953-1958),e após o estágio,comecei a advogar em Ovar,terra onde nasci.
Nos inícios da minha carreira,quando ainda era novato e ingénuo na arte de discursar,tive um exemplo edificante.
Sucedeu que um cidadão do concelho de Ovar,com armazém na cidade,foi no "conto do vigário",por quantia
avultada e,participado o crime,veio o Ministério Público a acusar dois réus,ambos da região da Maia.A mãe de
um deles veio procurar-me para defender o seu filho;o outro passou procuração a um dos mais conhecidos
advogados criminalistas,à data,da cidade do Porto.
Processo algo volumoso,com uma ou outra questão de direito a merecer um certo estudo,com matéria de
facto a merecer cuidado,a questão deu-me umas horas de trabalho antes do julgamento.
Aquando deste,o colega célebre do Porto,já sentado na bancada,vira-se para o novato e diz-lhe perante o
seu espanto :
- O colega estudou o processo ?
E,sem esperar pela minha resposta,acrescentou :
- Não tive tempo de o fazer. E já que não o consultei o colega interrogará as testemunhas,acompanhará o
julgamento. Confio inteiramente em si. E enquanto no decurso da audiência de julgamento me encarreguei
das declarações do queixoso e arguidos,dos depoimentos das testemunhas,de chamar a atenção do
tribunal para as contradições da prova,o meu colega,para meu novo espanto e assombro do delegado
do Procurador da Republica,rabiscava um soneto cujo conteúdo,confesso,já não me recordo.
Só quando surgiram as testemunhas de defesa,do bom comportamento do réu que defendia,é que
o meu colega "acordou" para o julgamento. Interrogou-as,então,com vigor sobre a pobreza do seu
constituinte e ascendentes,sobre o alcoolismo do pai que o teria abandonado,muito cedo,aos cuidados
da mãe,sobre os altos méritos desta,sobre os filhos menores que viveriam quase da mendicidade,
sobre a sua toberculose,e sobre tantos e tantos outros factos do mesmo género.
Vieram as alegações.
Pesando as palavras,expus com a clareza que me foi possível,os factos e o direito. Dissequei o
processo,levantei dúvidas e falei algo sobre o comportamento do meu cliente.
A assistência,que enchia por completo a sala de audiências do velho tribunal,instalado na ala sul
do primeiro andar do edifício dos Paços do Concelho (o caso do "conto do vigário" tinha sido muito
constado em Ovar) ,a assistência "nem mugiu nem tugiu" à minha argumentação.
Levantou-se,depois,o meu colega: do processo pouco ou nada disse,mas falou,"em geito de fazer
chorar as pedras",e se não me falha a memória,pouco menos de meia hora,sobre a vida do réu,
da mãe,da mulher,dos filhos.
A mulher e a mãe do seu constituinte,a mãe do meu cliente,sentadas no primeiro banco da sala
choravam,e quase todas as pessoas que as tinham acompanhado dos arredores do Porto - outros
familiares e testemunhas - estavam de olhos e boca aberta,fascinados pela eloquência do meu colega.
Ainda me recordo,como se fosse hoje,a estadia,horas depois,do meu cliente e da mãe no escritório.
Enquanto me pagava,afirmava-me esta,com uma sinceridade que não magoava : - Oh!,sr.doutor.
Gostei do que fez pelo meu rapaz,o sr.doutor lá sabia aquelas coisas do processo,mas,oh!,sr.doutor,
não desfazendo no senhor,aquele seu colega,é tão bom! Que grande advogado! Até nos fez chorar
senhor doutor! "
in "Advogados e Juízes na Literatura e na Sabedoria Popular",vol.I,págs.115 e segs.
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Esta obra do Dr. Alberto Sousa Lamy, ilustre Advogado de Ovar,é um trabalho de grande fôlego,que
exigiu muitas e muitas horas de pesquisa e de estudo,de recolha de informações,sobre advogados e
juìzes,e está recheada de quase tudo que diz respeito a advogados e juìzes e á justiça em geral,que
tenha a ver com a literatura e a sabedoria popular. Como se diz na contra-capa " é um estudo e
compilação das citações literárias encomiásticas e cáusticas,da poesia,fábula,romance,novela,conto
e teatro,desde "As Vespas"(422 a.C.),de Aristóteles,à actualidade,referentes aos Advogados e á
Advocacia,aos Juìzes e à Justiça,ao Ministério Público,ao Juiz de Instrução,ao Jurí. Compreende,
além de recordações e anedotas da vida judicial,adágios,aforismos,apotegmas,axiomas,considerações
humanísticas,definições mordazes,ditos curiosos,espirituais e históricos,epigramas,frases célebres e
populares,locuções,máximas,pensamentos,provérbios,paradoxos,reflexões,sarcasmos,sentenças,
textos e vocábulos ".
O Dr. Alberto Sousa Lamy é natural de Ovar,onde nasceu,no ano de 1934,e onde exerce advocacia
( " já lá vão quase quatro décadas de profissão,com centenas e centenas de julgamentos nas minhas
costas..."), e já desempenhou relevantes cargos na Ordem dos Advogados,nomeadamente no Conselho
Geral e no Conselho Superior da Ordem. E é também um escritor consistente no que diz respeito a temas
sobre a Advocacia e a Justiça e sobre o "seu" concelho de Ovar. O " Dicionário da História de Ovar ",foi 
a sua 13ª obra. Aliás,em 1994,foi agraciado pela Câmara Municipal de Ovar com a medalha de ouro
do Município,pela sua dedicação e divulgação da história local.
Todos os juristas - e todos aqueles que se interessam pelos temas da justiça - têm aqui,nesta excelente
obra,amplos motivos para saciarem a sua curiosidade pelo mundo da justiça.
" Advogados e Juìzes na Literatura e na Sabedoria Popular ",foi editado em 2001 e custam - os 3 volumes -
37 euros. Não deixa de ser um "preço de amigo" para os tempos que correm e para a qualidade da edição.
Também há uma edição comemorativa do 75º aniversário da Ordem dos Advogados,que pode ser comprada
na O.A.,por cerca de 30 euros. Foi a que eu comprei.
Do Dr. Alberto Sousa Lamy possuo na minha biblioteca jurídica,já há muitos anos," Advogados-Elogio e Crítica",
editado em 1984. Mas este,é um pequeno livrinho,com 106 páginas,enquanto "Advogados e Juízes na Litera-
tura e na Sabedoria Popular",são 1296 páginas de texto,em letra pequena,nos três volumes.
É posível que,lá mais para a frente,volte a falar nesta obra do Dr. Sousa Lamy. Ainda não a li na totalidade.
E aqui deixo o convite. Quem não leu,leia! Tem muito para agradar a toda a gente,no que se refere à temática
da Justiça em geral e da Advocacia em particular.
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NOTA 26 - O ARTIGO  NÃO  EXISTE
O prometido é devido. Agora,depois de ter lido na totalidade "Advogados e Juìzes na Literatura e na Sabedoria Popular",
do Dr. Alberto Sousa Lamy,cá estou para fazer um comentário final.
O Dr. Sousa Lamy consultou cerca de 860 autores e alguns milhares de livros para escrever esta obra,o que lhe
exigiu,por certo,um grande esforço e o preenchimento de muito tempo na recolha de todas as informações que compõem
estes 3 volumes. Costuma dizer-se que " quem corre por gosto não cansa " e,vê-se deste trabalho,que o Dr. Lamy
" teve sempre e tem pela Advocacia uma grande predilecção " . De facto,só alguém entusiasmado e com gosto
pelo que faz,se daria ao trabalho de compilar tão grande acervo de informações referentes aos Advogados e á
Advocacia,aos Juìzes e à Justiça.
Aqui ficam,a título de exemplo,três das muitas histórias que existem nesta Obra :
1 - O Artigo Não Existe
" Alexandre Braga,orador admiràvel de fogosidade e argumentador pelo imprevisto das suas razões,
defendia perante o tribunal um réu de crime ligeiro,causa para que,no último momento,tinha reclamado
o seu patrocínio.
- Senhor Juiz,peço para o acusado toda a benevolência do tribunal,pois que o próprio Código Civil,
no seu artigo 2.735 ...
O Juiz,cortando :
- Lembro ao sr. advogado de defesa que o Código Civil só tem 2.538 artigos e que,portanto,a disposição
citada não existe.
Logo,Alexandre Braga,num verdadeiro assomo de convicção:
- Pois,se não existe,devia existir ! "
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2 - A História da Vaca
" A campanha contra o Administrador continuava. Como Sapo aparecia a miúdo por Corgos,perdia tardes
inteiras no café,rodeado de amigos e de gente que farejava apenas o escândalo. Pagava bebidas e ia
metendo o veneno a pretexto de tudo,quer se falasse de negócios,de mulheres ou do tempo :
- O que não pode continuar é esta ladroeira. Pra que temos nós Administrador,amigos ?
Engolia o cálice de aguardente e começava a desfiar histórias atribuindo-as ao doutor Carmo.
- A da vaca,vocês sabem a da vaca ?
Sabiam,mas ficavam em silêncio e Cosme contava. Dois lavradores haviam tido uma pendência
a propósito de uma vaca. O animal é meu,não é,mas é,cada qual com suas razões,até que um
deles resolvera consultar o doutor Carmo. Aparecera um dia e pusera-lhe a questão. O advogado
ouvira atentamente e concluira,batendo as mãos nas costas do homem :
- Claro,amigo,processamo-lo e a vaca é sua.
Este a sair e o outro campónio a bater ao cartório.
- Doutor: isto,aquilo,etc.
Historiara a desavença,queria saber de que banda estava o direito. O Administrador sorrira :
- Não tenha dúvidas,alma de Deus ! Tribunal com ele,o bicho é mais do que seu. Ande-me pra diante !
D. Hermengarda que teria ouvido as duas conversas,perguntara ao marido :
- Afinal de quem é a vaca ? Do primeiro ou do outro ?
E o doutor Carmo respondera descansadamente :
- Qual quê,mulher ! Não tarda que a vaca seja nossa. "
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3 -  A  PESCADA
" Este advogado era o cínico mais completo que D. Pedro IV havia encontrado desde que desembarcara
no Mindelo ou aí perto. Depois que a causa liberal triunfara,viera a conhecer muitos,mas nenhum tão
perfeito nem tão redondo. Contava-se que uma ocasião,em Vila do Conde,um pobre pescador que precisava
tomar um conselho jurídico,levara de presente ao advogado uma pescada,que entregara á criada,
esperando que deste modo se eximiria a pagar a consulta a dinheiro. Depois,entrando no escritório do
advogado,dissera-lhe :
- salve-o Deus,senhor doutor ! Vim hoje trazer para vossa senhoria a melhor pescada que ontem saiu na rede.
Perdoará Vossa Senhoria a limitação ...
- Muito obrigado,meu rapaz. Então não queres nada de mim ?
- A dizer a verdade,senhor doutor,já que aqui estou,aproveito a ocasião para pedir a vossa senhoria um conselho ...
- Vamos a isso,rapaz. Dize lá o teu caso.
O pescador expôs a questão,e o advogado deu o conselho ; por simples cortesia,perguntou-lhe o pescador
quanto era.
O advogado respondera indiferentemente,folheando alguns processos.
- É um "pinto" (480 réis).
O pescador,espantado,tirara do seio uma velha saca de algodão,e dentro dela 480 réis.
Pagou. Mas saindo do escritório,jurou aos seus deuses que não ficaria comido.
Foi direito á cozinha e disse á criada que o senhor doutor lhe não quisera aceitar aquela espécie de
gratificação,que preferira dinheiro ; por isso que tornava a levar a pescada embora.
E o certo é que a levou consigo.
À hora de jantar,o advogado,esfregando as mãos jovialmente,disse á cozinheira
 que lhe trouxesse a pescada.
- Qual pescada,senhor doutor ?! - perguntou ela. O pescador tornou a levá-la. Veio dizer que vossa
senhoria a não queria. E que lhe tinha levado um "pinto" pelo conselho ...
- Grande maroto ! exclamou o doutor. -É o uníco homem que se pode gabar 
de ter sido mais fino do que eu !"
...................  E pronto ! Aqui fica esta breve referência a "Advogados e Juìzes na Literatura e na Sabedoria
Popular" . Não se pense por estas histórias - são apenas histórias - que o Dr. Sousa Lamy não tem em boa
conta os advogados. Pelo contrário, " certamente,que ao longo de uma carreira de mais de quarenta anos,
ao lado de Juìzes,Delegados e Colegas íntegros e competentes,também o autor encontrou,ali e acolá,
magistrados e causídicos que envergonharam as suas funções e a sua profissão.
Mas esses poucos e tristes exemplos - que não preenchem os dedos duma mão,e que existem,infelizmente,
em todas as profissões,em todas as classes - ,têm de ser,na medida do possível,rigorosamente reprimidos
pelos Conselhos Superiores da Magistratura,do Ministério Público e da Ordem dos Advogados.  
A Justiça,diz-se,está em crise - não terá estado quase sempre,em todos os tempos e em todos os países ?!-,
- sendo necessário pugnar pela sua elevação,pela sua grandeza.
Ao rememorar o que foi dito sobre a Justiça,sobre os Magistrados,sobre os Advogados,oxalá o autor possa
ter contribuido para o estudo das medicinas a aplicar-lhe."