NOTA 11 - CRÓNICAS DA GUERRA

1 -  QUANDO  O  CORREIO  CHEGA
Ponto de encontro de vontades,marco de um entendimento maior e informação de uma realidade
viva e desejada,o correio assume uma importância enorme para militares que se encontrem no
Ultramar. O conhecimento de uma nova realidade não é acompanhado pela fugaz diluição daquilo
que se era,mas funciona antes como estímulo perspicaz para continuar a manter um contacto que,
ultrapassando o tempo,chega ao sentimento.
Assim,é ver a alegria,pouco controlada,de militares separados de amigos e familiares,quando saúdam
com um largo sorriso,misto de ansiedade e de alegria,a carta que os irá levar por alguns minutos ao
contacto,ledo e calmo,com aquilo que construiram ao longo da vintena de anos da sua existência.
Num aquartelamento de frente,no mato,onde há menos possibilidade de distracção,os soldados
possuem uma peculiar forma de sentir a chegada do correio,já que não existe o deligente funcionário
dos C.T.T. para ir depôr em casa de cada um,aquilo que lhe é destinado.
Quando lá ao longe se começa a ouvir o ruído surdo e vago dos motores do taxí aéreo,é vê-los,aos
soldados,a gritarem a plenos pulmões,impelidos por uma força que não conseguem controlar :
" Avião! " " Avião! " " Avião! " ... é que,ali pode vir o conforto psíquico que irá transformar aquele dia,
que até então era de esperança,num enorme e ridente festejar de vida.
Quando o avião chega,saem géneros frescos,peças de mecânica e... o inconfundível saco do correio.
A expectativa aumenta.Na Secretaria faz-se a separação:oficiais,sargentos e praças.Estes,que são
em maior número,possuem o maço mais volumoso.O sargento de dia,transportando entre braços o
precioso conteúdo,sai á procura de um local alto de onde,com mais facilidade,possa fazer a distribuição.
Mas antes que alcance isso,vê atrás de si,ao seu lado e á sua frente,um grupo de militares que lhe
impedem o caminhar.Mas não há distúrbios.Há esperança,pois " deve chegar hoje uma carta da namorada,
ou pelo menos,notícias da família... ."
Os nomes vão surgindo e os contemplados pulam por dentro. Mas,até á última carta,todos esperam,pois
aquela pode ser,finalmente,a sua.
Depois - sente-se bem que as pessoas são seres individualizados - uns procuram uma árvore solitária e
sentam-se junto ao tronco,quedos,absortos e,quase sempre felizes com as notícias que o avião lhes
trouxe ; outros,preferem um recanto da caserna que lhes permita a reflexão ; ao passo que aparece
sempre o grupo dos que gostam de contar aos amigos aquilo que mal acabaram de ler.
Passados os primeiros minutos,fica a certeza de uma posição que se tomou e,aquele dia que até ali
fora de esperança,transformara-se,por causa do correio,em mais um dia no qual os laços com familiares
e amigos do continente se tinham fortalecido.
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P.S. - adaptado de um artigo publicado no jornal " O Sesimbrense ",de 23/12/1973.
Escrito em Cabo Delgado,Moçambique,em Outubro/1973
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2 -  O  ALFAIATE
Justo é chamarmos as pessoas pelo nome próprio,mas muitas vezes funciona a alcunha como
representativa de características fisiológicas ou psiquicas de um dado indivíduo.Também acontece
que,quando não sabemos o nome de uma pessoa,é frequente usarmos a profissão como epíteto.
No nosso acampamento militar,o alfaiate não tinha nome,era somente alfaiate.Mas a popularidade
que tinha granjeado devido ao bom humor,à justiça e á integração que conseguia fazer entre soldados
africanos e europeus,fazia com que,quando alguém dizia " aí vem o alfaiate! " ,todos se voltassem com
curiosidade e predispostos para a alegria,porque sabiam que se seguiria um bom momento de convívio
entre toda a gente.
Depois do trabalho e no crepúsculo de mais um dia,os soldados sentavam-se em pequenos grupos,
conversando sobre a última operação ou sobre as notícias que o correio trouxera. Eram conversas
fáceis e que faziam desanuviar um pouco o espírito tão ocupado com os trabalhos da guerra. Era
interessante verificar que os soldados africanos se agrupavam conforme as raças:os macondes iam
para um local,os macuas escolhiam outro,enquanto os suhalli ocupavam um terceiro.Com os da
Metrópole,os grupos formavam-se conforme a amizade maior ou menor que na caserna se tinha
criado com "a" ou "b".
Mas quando surgia o alfaiate,todos os grupos se juntavam e aquele homem,simples e modesto,
conseguia prender a atenção e dar alegria a várias dezenas de militares. Tinha espírito e engenho e
sabia histórias antigas que agradavam a quem as ouvia.Mas,mais importante que isso,era a participação
que conseguia tirar das pessoas e não era raro vermos um maconde ser secundado por um europeu e
este por um suhalli.Por isso,naqueles encontros não havia raças nem dialectos.Todos se percebiam e
comungavam do mesmo espírito de satisfação.
Quando o alfaiate se ia embora,os soldados separavam-se e os grupos já não eram os mesmos,porque,
entretanto,um maconde ficava a falar com um europeu e um macau com um suhalli. Assim se fazia a
integração rácica e social que muitas vezes a acção psicológica programada não conseguia fazer. É
 que,uma pessoa como o alfaiate,consegue com bastante facilidade,influenciar e predispor bem um
grupo heterogénio e diversificado como aquele,apesar do ambiente fechado e tenso próprio de um 
aquartelamento isolado.
Depois de um encontro com o alfaiate e quando o Sol desaparecia por detrás dos montes,que já 
pertenciam a outro país,os militares,esquecidos das dificuldades e das ausências,iam também eles
descansar,com o espírito mais desanuviado,lembrando que a guerra é uma via para se atingir a
paz,uma paz onde macondes,macuas,europeus e suhallis se deem tão bem como naqueles encontros
que o alfaiate proporcionava.
P.S. - adaptado de artigo publicado no jornal "O Sesimbrense" de 06/01/1974 
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3 - O  VALENTE  SOLDADO  MILLUS
Não é nada ao Chveik nem lhe veste a pele,mas é um valente soldado. É africano,vive perto de
Nampula e faz da obidiência,da perspicácia e da vontade as suas armas. Aprendeu com o pai,que
é caçador,a andar no mato e a conhecer os seus mistérios. Aí criou um enorme sentido de orientação
e sabe dizer quando foi feita uma pegada e por quem. Ia á procura dos irmãos e dos amigos que
brincavam na floresta e para os encontrar seguia-lhes o rasto.Assim aprendeu a conhecer uma pegada
de criança,de homem ou de mulher, e dos animais selvagens que por lá andavam. Quando era pequeno
o pai ensinou-lhe o manejo de armas brancas e domina perfeitamente a lança com a qual matava gazelas
e porcos do mato. Era,também ele,um exímio e destro caçador.
Veio para a "tropa" há alguns meses e foi conhecer cidades onde nunca tinha ido.Gostou muito de Lourenço
Marques.Diz que é uma grande cidade.
Ensinaram-lhe táctica de guerrilha e técnica de combate e ele,conhecedor de magras letras,ficou a saber
o que vinha nos livros. Passados uns tempos mandaram-no para o norte. Aí iria mostrar que era um valente
soldado. Quando sai para uma operação oferece-se quase sempre para ir á frente.Utiliza a catana com
certeza e com vigor. Corta rapidamente os ramos que obstruem a progressão e com um olhar arguto e
perspicaz consegue ver para além do visível. Ele sabe que mais á frente pode estar uma emboscada à
sua espera e dos tempos de infância guardou uma desenvolvida intuição que lhe diz quando está gente
próximo. Nunca profere termos inconcussos,nem é adepto do dogma. Diz sempre : "parece-me que..."
Quando se aproxima uma zona de mata mais aberta,ele,que vai á frente,manda parar a coluna.Avança
sozinho alguns metros para se certificar de que não há perigo e quando pensa que se pode continuar
faz sinal aos companheiros que o seguem com confiança. Faz isto expontaneamente sem necessitar de
ordem
O soldado Millus é reservado e obediente.Os camaradas teem por ele uma grande admiração porque a
justiça faz parte da sua essência e porque sabem que o que fôr justo será enaltecido e o que fôr injusto
não terá a sua concordância. Nas divergências que por vezes se levantam entre europeus e africanos,
toma sempre a posição correcta que não é esbatida pelo confronto das cores. Ele sabe que gente má
existe em todo o lado,seja na Europa ou em África,na América ou na Ásia. Millus sabe que não é a cor
nem a raça o móbil principal das lutas entre os povos. Sabe que o confronto se filia muito mais em questões
de ordem económica e financeira do que na cor da pele ou da raça. Acredita na integração racial,mas
para isso o mundo terá que mostrar outra face,mais justa,menos egoista,mais humana. 
Nas horas vagas chamam-lhe ingénuo e dizem que em todos os países,em todos os locais,há sempre
alguém que se distingue pelo virtuosismo do raciocínio,pela análise fácil das questões,pelo pendor
optimista da intervenção. Naquele aquartelamento,Millus é a imagem real de um jovem irrequieto que
possuindo uma fada mágica vai com ela até espaços que os outros não alcançam. E gosta de dizer
que a filosofia de cada um não abarca tudo aquilo que há entre o céu e a terra.
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P.S.- publicado em "O Sesimbrense" a 03/02/1974. Adaptado.
escrito em Cabo Delgado/Moçambique